28 de março de 2024

Igreja Universal expande ação social e ocupa espaços ignorados pelo poder público

São 257 mil voluntários no país oferecendo desde cursos e orientação jurídica ou psicológica aos mais variados serviços, como corte de cabelo, manicure e até aula de alongamento, sempre seguidos por oração


Por Folhapress Publicado 11/08/2019
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Uma caixa de som toca “Festa de Rodeio”, do sertanejo Leonardo, enquanto o caminhoneiro Sebastião Jorge Paes Peixoto, 53, tem suas unhas lixadas e esmaltadas com base transparente. “Meio efeminado”, brinca, ao ver o resultado da primeira vez que havia passado por uma manicure.

Ao lado dele, outros motoristas de caminhão tinham o cabelo cortado, a barba feita ou a pressão medida por voluntários da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), que montou uma tenda em um terminal de cargas da rodovia Fernão Dias, na Vila Sabrina (zona norte de São Paulo), para uma ação do programa de assistência social que iniciou durante a greve dos caminhoneiros de 2018.

O Guardiões da Estrada é um dos quatro projetos lançados no ano passado pela Universal, que expande sua atuação em meio à crise econômica e, em situações de vulnerabilidade social, ocupa espaços negligenciados pelo poder público.

São 257 mil voluntários no país, segundo dados enviados à reportagem pela Universal, oferecendo desde cursos e orientação jurídica ou psicológica aos mais variados serviços, como corte de cabelo, manicure e até aula de alongamento, sempre seguidos por oração.

Os outros programas criados em 2018 foram o EVG Night, voltado a prostitutas e travestis, o Grupo Saúde, para familiares de pacientes de hospitais públicos, e o Universal nas Forças Policiais, que atende profissionais da Polícia Militar, Civil, Federal, Rodoviária, Corpo de Bombeiros, agentes penitenciais e Forças Armadas.

Ao todo, segundo a igreja, são 15 projetos, que, em 2018, ano em que a Universal apoiou a candidatura à Presidência de Jair Bolsonaro (PSL), atenderam perto de 11 milhões de pessoas no Brasil. No exterior, afirma ter atuado em 92 países, dez a mais do que em 2017, e beneficiado 3 milhões, com a participação de quase 63 mil voluntários.

Genro de Edir Macedo e hoje o principal dirigente da Universal, o bispo Renato Cardoso, ao comentar essa expansão, opta por uma comparação com o mais famoso programa social do governo federal.

“Em números de beneficiados, os programas sociais da Universal já representam quase um terço do Bolsa Família.” A declaração está no material com dados sobre a expansão dos projetos da Universal encaminhado à reportagem pela assessoria de imprensa.

De acordo com os números divulgados, dentre os quatro novos projetos, o que contou com a maior quantidade de voluntários foi o Grupo Saúde, quase 24 mil, que atenderam mais de 750 mil pessoas.

Esse foi o mais próximo do alcance do Universal nos Presídios, um dos mais antigos e abrangentes programas da Universal, que, no ano passado, teve 27 mil fiéis dando assistência a 1,6 milhão de presidiários e seus familiares.
Em uma noite do último mês junho, com um vento gelado soprando e a temperatura perto dos 10 graus Celsius, cerca de 30 voluntários com aventais brancos colocaram mesas com lanches em frente ao Hospital Regional Sul, em Santo Amaro, zona sul de São Paulo.

O grupo começou a se organizar por volta das 20h30 e, em poucos minutos, formou-se uma fila de pessoas doentes e seus familiares, que aguardavam atendimento no pronto-socorro. Àquele horário, não havia onde comer por ali.
Voluntários com cadernos em mãos anotavam contatos de quem se aproximava, perguntavam sobre a doença e informavam que alimentos estavam sendo oferecidos.

Com bronquite, 39 graus de febre, Luis Silva Santos, 7, se aguentou em pé com esforço por alguns minutos na fila, em companhia de uma tia, até chegar a sua vez de escolher o lanche.

Ele estava havia quase duas horas nos bancos da recepção do hospital. Nas mesas com as comidas e as bebidas, ouvia cada fiel oferecer algo diferente: “Gostaria de passar álcool gel nas mãos? Prefere chocolate quente, chá ou café com leite? Quer sanduíche? Bolo? Salada de frutas?” Ao final, a última oferta: “Aceita uma oração?”

Luis, como a maioria dos que estavam na fila, aceitou. Equilibrando com dificuldade as embalagens de tudo o que havia recebido, o menino fechou os olhos enquanto duas fiéis rezaram por alguns segundos com as mãos sobre sua cabeça. “Amém”, e ele voltou ao banco do hospital onde comeu o lanche e seguiu esperando pelo médico.

“As famílias e os doentes ficam horas na fila de espera dos prontos-socorros sem nada para comer. Faz toda a diferença receber um lanche, uma palavra, uma oração”, disse o pastor responsável pela ação daquela noite, Jonathan da Silva Pereira, 32.

“O próprio sistema deveria oferecer esse conforto aos pacientes, mas não oferece”, comentou Dina Santos, 42, técnica em enfermagem e voluntária da Universal há 12 anos.

A vulnerabilidade no Brasil embaralha públicos-alvo da assistência social, e a fila para pacientes e seus familiares foi certa hora tomada por moradores de rua.
Mariana Gomes de Paula, 26, e a filha, Ranieli, 5, pegaram o lanche perto das 23h. Dormindo em papelão nas calçadas há sete meses, era a primeira vez que comiam algo naquele dia. Só recusaram a oração.

Para essa população em situação de rua, a Universal tem o Anjos da Madrugada, também um de seus maiores projetos, com 1 milhão de atendidos no país em 2018, por 23.500 voluntários.

O Guardiões da Estrada é o mais recente projeto, criado em setembro de 2018, três meses depois da paralisação dos caminhoneiros.

“A greve nos despertou. Esses profissionais sofrem com a falta de carga, estradas com buracos, assaltos, problemas de coluna, preocupação com problemas financeiros, com a família. Muitos têm depressão”, afirmou o pastor Rondineli Pedro da Silva, 38, responsável pela ação no terminal Fernando Dias.
Era uma noite fria de maio, o chão tinha lama graças a uma chuva recente, e “Mexe Mexe” havia acabado de entrar no lugar de “Festa de Rodeio”.

Caminhoneiro há 20 anos, Aldo Ferreira da Silva, 51, cortava o cabelo pela terceira vez com os voluntários evangélicos. Com o aluguel de R$ 800 atrasado, além da conta de luz, disse que não poderia perder a oportunidade de economizar no corte.

“Estava ruim e só piorou depois da greve, tem muito motorista passando fome. Eu estou há duas semanas aqui sem conseguir carregar o caminhão”, suspirou.
Ao seu lado, já no quinto corte de cabelo nas ações da Universal, Marco Antônio Guersoni, 60, motorista há 25 anos, reforçou o lamento: “Estamos perdidos… Eu não estou conseguindo sustentar a minha família. Ficamos sem carga em lugares assim, bagunçados, sem ter onde tomar banho. É uma sensação de solidão enorme”.

O pastor iniciou a oração: “Homens, gente da família e políticos já prometeram muitas coisas para vocês e não cumpriram. Mas Deus cumpre”. Todos receberam a “Bíblia Sagrada do Caminhoneiro”, uma edição com prefácio da cantora sertaneja Sula Miranda, conhecida como a “rainha dos caminhoneiros”, convertida à Universal.

Após essa bênção, um fisioterapeuta fez uma sessão de alongamentos. “Quem aí já acordou com o pé lascado?” Os cerca de 50 motoristas presentes levantaram as mãos.

Sebastião deu risada. Enquanto esticava braços e pernas, contou ter um problema sério na coluna.

“Mas quando pinta carga eu esqueço a dor e vou embora. Eu amo meu trabalho, o caminhão faz parte do meu corpo.” Há 40 horas sem dormir, relaxou com o alongamento e sentiu sono. “Vou para o caminhão dormir”, despediu-se. “Que amanhã eu tenho que carregar o caminhão com essas unhas feitas.”

LAURA MATTOS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)