A pauta legal do uso medicinal da Cannabis no Brasil em 2022

Paulo Daniel Cicolin, sócio do Zalaf Advogados, discute a evolução e o estágio atual dos aspectos jurídicos do uso da substância


Por Redacao 019 Agora
A pauta legal do uso medicinal da Cannabis no Brasil em 2022

Paulo Daniel Cicolin, sócio do Zalaf Advogados, discute a evolução e o estágio atual dos aspectos jurídicos do uso da substância

A discussão sobre o uso da Cannabis para fins medicinais tem evoluído nos últimos anos, especialmente a partir das regulações propostas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela discussão do tema no Congresso Nacional, ainda que a passos lentos quando comparada com outros países (como, por exemplo, Canadá, Uruguai, Espanha, Holanda e alguns estados americanos) e que, inclusive, já permitiram o uso não só para fins medicinais, mas também para o uso recreativo, assunto específico que, no Brasil, ainda está longe de amadurecer.

No entanto, para qualquer exercício sobre a pauta da Cannabis para o ano de 2022 é preciso entender, ainda que brevemente, como chegamos ao estágio atual.

O ponto de partida para compreender a situação da Cannabis no Brasil é o ano de 2006, por meio da atual Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que previu em seu artigo 2º, parágrafo único, a possibilidade de a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita de plantas vegetais como a maconha (cannabis sativa), exclusivamente para fins medicinais ou científicos, o que nunca ocorreu desde a vigência da referida Lei.

Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 187, reconheceu a legitimidade e constitucionalidade do movimento “Marcha da Maconha”, garantido a seus apoiadores o livre exercício do direito de reunião e expressão, o que contribuiu para colocar o tema ao menos em debate para a sociedade, ainda que estudos acadêmicos remontem desde a década de 1970 sobre os benefícios da planta.

Seguindo a discussão na sociedade, foi a vez do Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da Resolução nº 2.113, aprovar, no ano de 2014, o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias de crianças e adolescentes refratárias aos tratamentos convencionais, prevendo uma série de obrigações tanto para os médicos prescritores quanto aos responsáveis legais dos pacientes.

No ano seguinte, em 2015, a Anvisa publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 03, que atualizou a Lista de Substâncias Sujeitas a Controle Especial, prevista na Portaria SVS/MS nº 344/98, com a inclusão do canabidiol, bem como RDC nº 17, em que definia os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produtos à base de canabidiol em associação com outros canabinóides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.

Em nova atualização da Portaria SVS/MS nº 344/98, no ano de 2016, a Anvisa permitiu o registro de medicamentos derivados da cannabis sativa em concentração máxima de 30 mg de tetrahidrocannabinol (THC) por mililitro e 30 mg de canabidiol por mililitro, motivado pela fase final do procedimento de registro do medicamento Mevatyl®.

Em vista dessas atividades normativas, no ano de 2017, por meio da RDC nº 156, a Anvisa incluiu a cannabis sativa na Denominação Comum Brasileira com planta medicinal, permitindo um manuseio mais claro e preciso na área da farmacopeia brasileira.

No ano de 2019, a Anvisa publicou a RDC nº 327, que trata sobre os procedimentos para a concessão de autorização sanitária para a fabricação e importação, bem como os requisitos para a comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de cannabis sativa para fins medicinais – de uso humano.

Dentre os pontos de destaque da referida norma, podem ser citados:

Atualmente em vigor, a RDC nº 327/2019 pode ser considerada a principal norma do setor, visto que permitiu avançar em pontos até então obscuros para fabricantes, importadores, médicos e pacientes, contribuindo para o aprimoramento do sistema, tanto que neste ano de 2021 a Anvisa aprovou dois novos produtos à base cannabis, os quais foram solicitados com fundamento na referida RDC: soluções de uso oral nas concentrações de 17,18 mg/mL e 34,36 mg/mL, com até 0,2% de THC, os quais deverão ser prescritos por meio de receituário tipo B.

Outro ponto fundamental da RDC nº 327/2019 é sua transitoriedade, pois a norma deverá ser revista em até três anos de sua publicação, que ocorreu em dezembro de 2019, conforme seu art. 77, parágrafo único, o que deverá acontecer justamente no ano de 2022, ano de eleições no país.

Paralelo à regulação pela Anvisa, o ano de 2021 ainda reservou a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei (PL) nº 399/2015, que propõe alterar o art. 2º da Lei de Drogas, justamente para viabilizar o plantio, fabricação e a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta cannabis sativa em sua formulação.

O PL foi aprovado em regime de apreciação conclusiva pela Comissão Especial formada para tratar o assunto na Câmara dos Deputados e deveria seguir diretamente para o Senado Federal para discussão e votação nesta casa, mas houve a interposição de recurso por um grupo de Deputados e agora o PL deverá ser votado em plenário.

Os principais pontos do PL, tal como aprovado pela Comissão Especial, são os seguintes:

De volta para o futuro, o ano de 2022 impactará diretamente no caminho que o país seguirá para regular o uso da Cannabis para fins medicinais, especialmente em virtude do calendário político.

Como o assunto mexe com anseios políticos conflitantes, há a possibilidade de haver uma forte polarização da sociedade sobre o tema, o que poderá dificultar a formação de um consenso técnico pela Anvisa, com o objetivo de revisar a RDC º 327/2019, ou mesmo político pelo Congresso Nacional, com a discussão sobre o PL nº 399/2015.

Segundo dados da consultoria BDSA, especializada no mercado canábico, o mercado legal da Cannabis, no ano de 2020, atingiu o valor de US$ 21,3 bilhões, correspondendo a um aumento de quase 50% em relação ao ano de 2019, e deve seguir aumentando à medida que cada vez mais países autorizam o uso da Cannabis para fins medicinais e/ou recreativos, com previsão de atingir US$ 55 bilhões em 2026.

Em outro relatório elaborado pela Whitney Economics, também uma consultoria especializada no setor canábico, o mercado da Cannabis no Estados Unidos emprega atualmente cerca de 321 mil pessoas, 77 mil a mais que o ano de 2020.

No Brasil, segundo pesquisa realizada pela Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados no ano 2016, o Brasil poderia arrecadar até R$ 5,6 bilhões de reais em tributos num cenário de legalização irrestrita de Cannabis apenas com o uso recreativo. No mesmo estudo, os autores apontam que haveria uma economia anual com os presos por tráfico de Cannabis na ordem de quase R$ 1 bilhão, considerando todo o aparato estatal envolvido.

A expectativa para os defensores do uso medicinal continua sendo a possibilidade de autorizar a plantação da Cannabis em território nacional para fins medicinais, o que certamente traria inúmeros benefícios aos país, como o desenvolvimento do agronegócio e toda sua cadeia de suprimentos; novos estudos científicos e novas tecnologias de medicamentos pela indústria; além da arrecadação de tributos e geração de empregos, mas, principalmente, na possibilidade de redução de custos e ampliação de tratamento médico aos inúmeros pacientes que hoje necessitam da cannabis.

Neste cenário de polarização que o país vive atualmente, manter e renovar a vigência da RDC nº 327/2019, por um novo prazo de três anos, parece razoável e proporcional, especialmente porque o tempo para isso seria até dezembro de 2022, quando já se saberia o resultado das eleições e uma nova legislatura poderia continuar a discussão do PL nº 399/2015, considerando que dificilmente o PL entrará na pauta do plenário da Câmara de Deputados até lá.



Paulo Daniel Cicolin é sócio do escritório Zalaf Advogados

Formado em Direito com especialização em Direito Digital e Compliance pela Faculdade Ibmec São Paulo / Instituto Damásio de Direito e em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, além de técnico em Administração de Empresas pelo Etec Trajano de Barros Camargo.

Destaque de Gestão: Indicado como um dos advogados mais admirados na área cível no segmento de Siderurgia e Mineração pela revista Análise 500 (2019, p. 166).

Sair da versão mobile